segunda-feira, 30 de julho de 2012

FALA MAIS


- Ela estreita os olhos quando ri.
- Tá, isso é bom por quê? O olho dela é feio?
- Eu gosto, só isso.
- Cara, tem que ser diferente. Fechar os olhos, até eu.
- Você, não.
- Mas muita gente. Tenta outra.
- Bom... Ela brinca com as mãos enquanto fala de alguma coisa que importa.
- Tipo o que?
- Sei lá... Alguma coisa importante, ué.
- Não, “tipo o que?” de brincadeira com as mãos.
- Ah. Fica mexendo. Esfregando os dedos de uma mão na outra, se concentrando nas mãos.
- Um tique nervoso.
- Mais ou menos.
- E você acha legal.
- É legal. Humano, sei lá. Eu gosto.
- Prossiga.
-Bom... Tem o jeito que ela debocha dos outros.
O outro perdeu a paciência.
- Só valem pontos positivos.
- Mas é positivo.
- Pra você, que não sofre o deboche.
- Claro que sofro!
- E você gosta?
- Gosto, ué. É leve. Me faz rir. Aí ela começa a explicar didaticamente o deboche, pra debochar mais.
- E isso é bom?
- O deboche, não. Mas é. Assim... O deboche dela é diferente. Ela te joga no chão, de um jeito engraçado, e nunca está errada.
- Nunca?
- Não importa. Ela não dá espaço pro contra-ataque.
- E se estiver errada, você fala?
- O que? Que ela tá errada?
- É.
- Não sei.
- Como, não sabe? Ela nunca esteve errada?
Ele parou e pensou. Arregalou os olhos.
- Juro que não sei!
- Como é que alguém está sempre certo?
- Eu não disse que ela está sempre certa, só disse que nunca discordo.
- Por quê? Qual a graça?
- Sei lá!
O outro bufou.
- Tá. Continua.
- Falta o que?
- qualquer coisa. Temperamento.
- Ah, dos melhores.
- Hm. Bem humorada.
- É. Do jeito dela, né.
- Imagino.
- Assim, ela não é muito paciente, não. Nem muito tolerante. Mas se diverte muito com isso.
- Sei.
- Me diverte, também.
- Aham.
- Sabe, quando a pessoa é mal humorada...
- De um jeito legal?
- É!
- Não, não sei. Só sei que você anda muito abstrato.
- E qual a graça de ser concreto?
- Ih...
- Que foi?
- Nada. Compra da mesa ou do bolo?
- Eu já descartei.
- Ah...
Ele riu. E, em algum lugar, estreitando os olhos, ela também.

sexta-feira, 27 de julho de 2012

SOLIDÃO


Numa casa distante de qualquer outro edifício do município de Alta Floresta, Mato Grosso, Itaquiel montou seu escritório. Poucos habitantes da região sabiam de sua existência e, mesmo esses, apenas por acaso. O carteiro o odiava pelos quilômetros que precisava percorrer para entregar-lhe as contas. O dono do mercadinho no centro reconhecia de vista aquele estranho que vinha todo mês comprar um carrinho de víveres básicos. Enfim, Itaquiel, além do nome e da moradia, suportava o anonimato.
            Sua família há muito o tinha esquecido. Os pais morreram pouco depois de Itá – o apelido entre eles era Itá – completar os estudos na capital, onde não fizera amizade com ninguém. Segundo alguns velhos conhecidos, o casal morreu do tédio que era morar naquele fim de mundo. Ainda mais no Mato Grosso. Itá nunca chegou a conhecer esses conhecidos.
Depois de estabelecer residência na antiga casa dos pais, Itaquiel comprou um computador velho e abriu um negócio pela internet, por onde se comunicava com o mundo. Nunca prosperou, ganhava apenas o suficiente para pagar as poucas contas e manter-se razoavelmente bem alimentado. Não via televisão nem ouvia música, nunca tinha pisado num cinema e, apenas uma vez, beijara uma garota. Embora sonhasse com essa garota todos os dias, ela não fazia ideia do ocorrido.
Um dia, sentado em sua velha mesa de madeira e olhando para o monitor antigo e gasto, Itaquiel teve um sobressalto. Enquanto fumava seu cigarro de palha e pensava no que faria para gastar as longas horas até poder dormir, algo estranho aconteceu. Ali, no seu escritório, com um ventilador de teto que não conseguia movimentar nem as moscas pousadas nas pás, que dirá o ar, algo incrivelmente estranho aconteceu. O cigarro escorregou de sua mão, chamuscando a folha de caderno velha onde Itá rabiscara o rosto da garota de sua vida. Atônito, Itaquiel olhou para o antigo telefone que ficava jogado num canto, daqueles com uma rodinha em cima que você precisa encaixar o dedo pra discar. E aconteceu de novo.
O telefone estava tocando. Aturdido, o homem tentou se lembrar o que era aquilo e como estava fazendo aquele barulho ensurdecedor. Vagamente, da memória, veio a imagem do pai com a parte de cima do objeto na cabeça, falando com alguém que não estava ali. A palavra “telefone” surgiu em sua mente, ainda obscura e hesitante, como se estivesse coberta de teias de aranha. A palavra seguinte foi “atenda”.
Nervoso, Itaquiel estendeu a mão e segurou o telefone, esperando. Alguém estava ligando pra ele e ele não sabia o que fazer. Por que, meu Deus, alguém iria ter alguma coisa a dizer-lhe? Seria sua garota? Seria um colega antigo, perdido nos tempos da faculdade? Seria engano? Mesmo que fosse, Itá não se importaria. Naquele momento, alguém estaria prestes a lhe dirigir a palavra e ele, enfim, teria provas concretas de que não era apenas uma sombra de existência no mundo. Ele existia e ali estava a prova. Seu telefone tocava. Era hora de descobrir um mundo onde alguém gostaria lhe falar... qualquer coisa!
Lentamente, puxou o telefone do gancho e aproximou-o da orelha. A voz, há tanto tempo sem uso, demorou para encontrar o caminho da boca.
- Alô?
E, lá do fundo da linha, depois de uma pausa que quase fez o altaflorestense morrer, uma voz respondeu:
- Porra, Itaquiel!!!
E desligou.