quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

CANTO

Há pessoas que me entenderiam. São minoria, provavelmente uma vasta minoria. Não, eu não quis brincar com as palavras juntando o “vasta” e o “minoria”; foi só uma forma de me expressar. A vasta minoria entendeu. E eu também não quis dizer que sou um incompreendido. Ninguém está aqui pra pedir compreensão. Só acho que tem gente – muita gente – que não vai entender o que eu quero dizer com o que vou dizer. Olha aí, já comecei a enrolar, de novo.
Enfim, alguns entenderão. Eu entrei na sala e sentei, quieto, num canto. Um canto que passaria, com o tempo, a ser o meu canto. E, dadas as circunstâncias – eu era novo no lugar, não conhecia ninguém e não falava a mesma língua, metaforicamente falando, de nenhum dos outros -, isso era muito importante no momento. É claro que é sempre importante ter o seu próprio canto, independente das circunstâncias. Mas esse não é o caso. É importante, também, evitar repetir as palavras. E eu simplesmente não consigo fazê-lo.
Sentei-me no meu canto e ela sentou-se no canto dela. Na verdade, graças à grande empatia que causava nas pessoas, o canto dela mudava de canto a cada dia, por vezes mais de uma vez num dia só. Olha aí, tá vendo? Tem vezes que eu escrevo frases trava-língua. O que eu quis dizer é que ela variava de canto, um canto aqui, um canto ali, cada dia um canto, cada canto não necessariamente um dia. Canto de espaço, não de cantar, até porque cantar, cantar, ela não cantava. Em todo caso, ela se sentou próxima a mim, todo quieto no meu canto, e a professora entrou.
Entrou, falou e perguntou. Falando assim, parece que foi rápido, mas não foi. Era aula dupla, um verdadeiro sacrifício pra uma criança, e quando ela finalmente fez a pergunta, já estávamos no segundo tempo. E eu respondi. Sim, audacioso. Corajoso. Não conhecia ninguém no lugar e respondi, na cara e na coragem, a primeira pergunta do ano letivo. E ela, sendo “ela” não a professora, mas a menina-que-tinha-vários-cantos-mas-que-ainda-não-tinha-mostrado-isso, olhou pra mim. Olhou, sorriu debochada e me mandou calar a boca, adicionando à frase um vocativo bem triste para um garoto novo na cidade.
Audacioso, corajoso e, possivelmente, burro. Eu não lembro o que falei, ela também não lembra. O que eu sei é que ficamos amigos. Hoje, um dos meus cantos, desses só meus, é só dela, também.
Eu avisei que quase ninguém entenderia...

quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012

TIMING

Ela se sentou na sala de espera do dentista, pegou uma revista dessas de famosos, edição especial do Carnaval 2003, começou a folhear as páginas e reparou nele. Olhou de rabo-de-olho por alguns segundos e estranhou um rapaz tão bem arrumado estar ali, no dentista, numa sexta-feira de manhã. Ele não parecia ter cáries – mas, a bem da verdade, estava de boca fechada. Só quem vai ao dentista de manhã, ainda mais numa sexta, é quem sofre com as dores de um canal aberto. Ou então ele talvez fosse um daqueles moderninhos que trabalham mais pro fim do dia. Tipo um ator ou coisa parecida.
Ele percebeu quando ela entrou, apressada, e foi falar com a recepcionista. Pela pressa, devia ter descoberto um novo buraco nos dentes. Sim, novo, pois pelo jeito essa não era a primeira vez que a moça ia ao dentista ali. Até chamou a secretária pelo nome! Ou então era apenas hipocondríaca e queria saber se aquela afta era ou não um câncer de boca. Ele espiou pela borda de cima da revista que trazia fotos exclusivas do desastre do World Trade Center. Surpreendeu-se com a garota reparando nele. E justo num dentista! Não era todo mundo que reparava nele, não estava preparado praquilo.     
Ela pensou que a vida é assim mesmo, às vezes nós damos atenção a quem menos esperamos. Pode acontecer até assim, numa sala de espera do dentista. O outro parecia ter notado sua indiscrição. Pra parecer menos indiscreta, ela sorriu, mostrando que tinha todos os dentes. Pelos menos os da frente estavam em excelentes condições, O sorriso era um convite para que ele fizesse o mesmo. Não sabia qual era a dele mas, se tudo desse certo, eles poderiam conversar melhor. Isso, é claro, se houvesse uma compatibilidade, no mínimo, dentária.
Ele achou que aquilo era demais. Você olha, ela olha e pronto, as mulheres já acham que aquilo pode virar uma bola de neve que resultará em casamento, filhos e morte solitária e lenta. Era só um encontro casual no dentista, não havia motivo pra acelerar as coisas e, sinceramente, talvez ele se sentisse mais receptivo DEPOIS do clareamento que ela, claramente, estava ali pra fazer.
Ela fechou a cara e discordou enfaticamente do ponto de vista dele. Sim, era só um encontro casual, mas a falta de romantismo dele era uma prova de que nenhum homem nesse mundo deve ser levado a sério demais. Não custa nada demonstrar um pouco de carinho, mesmo nessas horas íntimas. Ele era um grosso.
Ele bufou e olhou pra cima, já de saco cheio dos ataques dela, sempre disposta a fazer um escândalo por qualquer coisinha que ele fizesse.
Ela virou a cara e decidiu não dirigir mais a palavra a ele.

Ele foi chamado pelo dentista e os dois nunca mais se falaram.

BALCÃO


BALCÃO

Eu estava no balcão de um bar. Pensativo. Eu não bebo, só refrigerante e água, mas o clima de um bar me basta pra afogar as mágoas. Certo, eu não tenho muitas mágoas, mas o clima do bar me deixa pensativo e melancólico. Talvez o refrigerante estrague essa cena pra quem vê de fora, mas funciona pra mim. Eu estava, de fato, bebendo, pensativo e melancólico.
Não sei exatamente por quanto tempo estive ali. Provavelmente uns vinte minutos. Bebidas gaseificadas não alteram seu raciocínio, por isso não fazem o tempo passar mais rápido. Então, digamos, por volta de vinte minutos. Vinte minutos e pouco. Talvez quase vinte minutos. Bom, tempo suficiente pra que eu ficasse pernóstico. Ou é redundante? Quando se enrola muito pra chegar a uma conclusão, qual é o nome mesmo? Enfim, com certeza mais de quinze e menos de vinte e cinco minutos.
Foi quando ela entrou no bar. Eu sei, eu sei, é meio clichê um cara no bar, pensativo e melancólico, quando entra uma mulher gostosa. Ou bonita, depende do seu grau de melancolia. Pra mim, era gostosa. Quer dizer, eu estava melancólico, mas sóbrio. Quase um meio termo. Em todo caso, ela entrou, sentou-se ao meu lado e pediu um chopp.
Eu sei no que você está pensando. Um chopp decididamente estraga a cena. Ela podia ter pedido um drinque de cor clara, talvez vermelho como o vestido e o batom. Sim, eu sei também que nenhuma mulher vai sozinha a um bar, de vestido e batom vermelho, pra tomar um chopp. Mas a fantasia é minha, a história é minha e, diabos, o bar é meu, também. Ela se sentou e pediu um chopp. Quando eu finalizar a história, facilita pra fechar a conta.
Ela pediu o chopp, sorriu pra mim e perguntou o meu nome. Ou talvez tenha sido o contrário. Sim. Eu sorri, eu perguntei o nome. Aí, sim. Ela respondeu, me disse o nome e perguntou o meu. Respondi.
E aí? Nunca fui bom nessa parte da abordagem. Nem em contos. Talvez eu tenha sido espirituoso, do tipo “as poltronas lá de casa são mais confortáveis que as dessa espelunca”. Não, eu não sou do tipo que fala “espelunca”.  Talvez eu tenha segurado sua mão... Não, isso seria bom vendo o nascer do Sol no Arpoador, depois de uma noite de aventuras. Noite de aventuras?
Esse refrigerante me subiu demais à cabeça. Deixei uma nota de cinco no balcão, me levantei e fui embora.

PORTO SEGURO 1

Porto Seguro, 18 de janeiro de 2010
            15:51


            Dizem que o dono da Poente Vermelho, uma cabana de praia em Porto Seguro, é tão frio, rude, indiferente e difícil de lidar que não dá um sorriso desde a final da Copa de 94, quando o Romário perdeu aquele gol. De ironia. Grosso, nunca dirigiu uma palavra de afeto nem à filha, que se casou no mês passado e ganhou de presente de casamento um pacote de biscoito. Salgado. 
            E, por coisas que ninguém entende, é justamente por esse gênio ruim que sua cabana vive cheia, com pessoas ansiosas por levar um xingamento daquela lenda da praia. Ou pra ver quem consegue, enfim, dobrar o coração do velho. E foi por isso que o bar da cabana ficou em silêncio naquele dia.
            Um morador do sertão baiano, na cidade à procura de emprego, contava sua vida. A história era contada entre goladas de cerveja – paga por um turista argentino bem humorado – e todos prestavam atenção no pobre senhor que morava, como ele mesmo dizia, “pra lá da casa do Diabo”. Sentado num banco perto do balcão ele falava pra todos, mas olhava mais pro dono da cabana de praia - que estava atrás com um paninho no ombro. O que levava todos a crer que éramos telespectadores de um programa de TV protagonizado pelos dois, ali, ao vivo.
            É claro que o sertanejo não falava dessa forma que escrevi e metade de nós passava o tempo todo perguntando “Hein? Que foi que ele falou ali?”, mas eu tentei simplificar um pouco.
            - Lá onde eu moro – disse o sertanejo – todo mundo é tão pobre que nem se pode dormir até depois do Sol nascer, que acorda com a luz entrando pelo teto. Alguns de nós nem tem teto.
            A platéia, chocada, se olhou com cara de “já imaginou? Nem teto!”. E o dono da cabana só olhando.
            - A gente levanta e trata logo de comer uma farinha, que é pra agüentar o dia todo. Aí minha mulher e as mulheres das outras casas vão pra rua vender o artesanato.
            O sertanejo mostrou o cordão, que tinha uma pequena escultura feita de barro.
            - A gente sabe mexer com barro como ninguém.
            E o dono da barraca, nada.
            - Não vende muito bem não, mas dá pra comprar alguma coisa pra comer. No mês passado a gente comeu até queijo.
            Sussurros pela cabana, “até queijo!”, em sinal de alegria pelo pobre senhor.
            - E enquanto as mulheres fazem isso, eu e os outros homens separamos os tonéis de água.
            Chegou ao ponto que todos esperavam. A água. A maior angustia de todos na cabana era imaginar como aquele povo fazia pra conseguir água – até barro eles tinham, água era o mínimo!
            - E nós andamos. Andamos por uma, duas horas dependendo da direção do vento. E só carregando aqueles tonéis, pra trazer água pra todo mundo. E barro, claro, pras mulheres.
            E todo mundo na cabana balançando a cabeça, imaginando o sofrimento daquele povo. O dono da cabana, impassível.
            - A gente anda, chega no rio, enche tudo e volta. Volta mais devagar, claro. E aí é que fica mais difícil, porque o Sol começa a queimar. E Sol, no sertão, é mais forte que o daqui de Porto Seguro, que é onde ele só vem passar férias.
            Risinhos na platéia. Menos do dono da cabana, que finge que não é com ele e limpa um pedaço do balcão.
            - Aí, quando a gente chega em casa, nem tem tempo de descansar, vai logo ajudar a mulher. É difícil, a vida no sertão, viu?
            E tomou mais um gole de cerveja. Todo mundo olhou pro dono da cabana. Era a hora do veredicto. E então, é difícil a vida no sertão? E o velho – e grosseiro – dono da cabana não perdeu a oportunidade:
            - Entre ser pobre no meio do nada e ser pobre perto do rio, deixa de ser burro e te poupa da caminhada.
            E foi, bufando, servir a turistada do outro lado.