Há pessoas que me entenderiam. São minoria, provavelmente uma vasta minoria. Não, eu não quis brincar com as palavras juntando o “vasta” e o “minoria”; foi só uma forma de me expressar. A vasta minoria entendeu. E eu também não quis dizer que sou um incompreendido. Ninguém está aqui pra pedir compreensão. Só acho que tem gente – muita gente – que não vai entender o que eu quero dizer com o que vou dizer. Olha aí, já comecei a enrolar, de novo.
Enfim, alguns entenderão. Eu entrei na sala e sentei, quieto, num canto. Um canto que passaria, com o tempo, a ser o meu canto. E, dadas as circunstâncias – eu era novo no lugar, não conhecia ninguém e não falava a mesma língua, metaforicamente falando, de nenhum dos outros -, isso era muito importante no momento. É claro que é sempre importante ter o seu próprio canto, independente das circunstâncias. Mas esse não é o caso. É importante, também, evitar repetir as palavras. E eu simplesmente não consigo fazê-lo.
Sentei-me no meu canto e ela sentou-se no canto dela. Na verdade, graças à grande empatia que causava nas pessoas, o canto dela mudava de canto a cada dia, por vezes mais de uma vez num dia só. Olha aí, tá vendo? Tem vezes que eu escrevo frases trava-língua. O que eu quis dizer é que ela variava de canto, um canto aqui, um canto ali, cada dia um canto, cada canto não necessariamente um dia. Canto de espaço, não de cantar, até porque cantar, cantar, ela não cantava. Em todo caso, ela se sentou próxima a mim, todo quieto no meu canto, e a professora entrou.
Entrou, falou e perguntou. Falando assim, parece que foi rápido, mas não foi. Era aula dupla, um verdadeiro sacrifício pra uma criança, e quando ela finalmente fez a pergunta, já estávamos no segundo tempo. E eu respondi. Sim, audacioso. Corajoso. Não conhecia ninguém no lugar e respondi, na cara e na coragem, a primeira pergunta do ano letivo. E ela, sendo “ela” não a professora, mas a menina-que-tinha-vários-cantos-mas-que-ainda-não-tinha-mostrado-isso, olhou pra mim. Olhou, sorriu debochada e me mandou calar a boca, adicionando à frase um vocativo bem triste para um garoto novo na cidade.
Audacioso, corajoso e, possivelmente, burro. Eu não lembro o que falei, ela também não lembra. O que eu sei é que ficamos amigos. Hoje, um dos meus cantos, desses só meus, é só dela, também.
Eu avisei que quase ninguém entenderia...